Integrante da Articulação Afro Brasil SJ, Profa. Valdenice Raimundo é entrevistada por Comitê para Educação Étnico-Racial e professores do Vieira
Ação marca programação especial pelo Dia da Consciência Negra

Com pós-doutorado em Feminismo Africano, a professora Valdenice José Raimundo é pró-reitora de Pesquisa, Pós-graduação e Inovação da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), instituição jesuíta de Ensino Superior. Na Unicap, ela também lidera o Grupo de Estudos e Pesquisas em Raça, Gênero e Políticas Públicas e integra o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígena. Ganhadora dos prêmios “Mulheres Negras Contam sua História”, concedido pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir); e, “Guerreiras Tejucupapo”, da Ordem dos Advogados do Brasil, seção PE (OAB-PE) – , a professora Valdenice tem também uma participação ativa da Articulação Afro Brasil SJ.
Como parte das ações pelo Dia da Consciência Negra neste 20 de novembro, o Comitê para Educação Étnico-racial e de Gênero do Colégio Antônio Vieira publica esta entrevista exclusiva com a professora Valdenice José Raimundo. Ela aborda os desafios da trajetória acadêmica para jovens negras e pobres, a importância de políticas de enfrentamento ao racismo dentro e fora das escolas, bem como o papel das pessoas não negras na luta pelo engajamento contra o racismo e por novas práticas éticas e respeitosas entre todos e todas na sociedade. Como entrevistadores, duas integrantes representativas dos 11 membros do Comitê (a orientadora educacional Camila Portugal e a gestora da Casa de Retiro São José, Vanessa Vasconcellos) e os professores Jacson Paim (História) e Soraia Viana (Língua Portuguesa).
Confira a entrevista!
Camila Portugal – Sabemos que a trajetória acadêmica solicita do intelectual muita dedicação. Pode nos falar um pouco de como foi para a senhora construir uma carreira acadêmica tão sólida?
Profª Valdenice José Raimundo – Na minha experiência como mulher, negra e pobre, quando criança e adolescente, eu não tinha no meu horizonte um projeto, não sonhava em seguir a carreira acadêmica. Essa história foi se construindo até porque eu tive muitas dificuldades no processo para estudar. A minha família era muito pobre e com muitos filhos. Lembro que, quando eu estava terminando o chamado 1º grau, chegou um momento em que meu pai teve que dizer que não havia mais condições para que eu continuasse estudando. Daí começa a minha luta. Inicialmente, eu queria estudar, era apaixonada pelos estudos, porém eu não tinha esse projeto. É algo que precisamos ficar atentos, para que as nossas crianças possam ter projetos de virar acadêmicos, de se tornarem estudantes universitários, de serem pesquisadores, professores etc. Eu não tinha isso em meu horizonte. Eu queria estudar e a vida foi costurando essas possibilidades, a partir de oportunidades que iam aparecendo e eu me agarrava a elas. A minha carreira acadêmica foi, assim, tecida. Ela é o resultado de muita gente, ou seja, um resultado coletivo, e é isso que me põe no lugar de quem quer responder a isso, de quem quer, de forma grata, me envolver na luta, abrir caminho para outras pessoas negras, indígenas, porque toda minha vida acadêmica foi se dando na dinâmica do inesperado: passar no vestibular, doutorado, ser professora de uma universidade… Tudo dentro dessa ambiência do “surpreender-me”, porque não estava no “script” que essa trajetória poderia e pode ser feita por pessoas negras.
Vanessa Vasconcellos – Considerando a sua trajetória em importantes instituições acadêmicas, pode compartilhar os maiores desafios e também os avanços conquistados na demanda pedagógica, no quesito ações afirmativas para uma educação antirracista?
Antes de chegar na Unicap, eu passei por outras boas instituições do Ensino Superior, nas quais eu tive a oportunidade de criar a disciplina, naquela época eletiva, de Serviço Social e Relações Étnico-raciais. Quando eu cheguei na Católica, em 2012 efetivamente, pois eu já lecionava lá desde 2005, dando aula de pós-graduação lato sensu, mas fui efetivada como professora da universidade em 2012. O Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígena (Neabi) já existia. Então, criei o Grupo de Estudos e Pesquisas em Raça, Gênero e Políticas Públicas. O Neabi e o grupo de estudos e pesquisas estavam sempre juntos, promovendo ações, reflexões sobre o racismo nas práticas das instituições e das pessoas. Nós viemos promovendo isso desde 2012 e temos algumas conquistas apontando nessa direção, de uma instituição que vem se construindo como uma instituição antirracista: em 2019, nós tivemos o Edital de Inclusão Étnico-racial, pelo qual entraram ali cerca de 600 pessoas, jovens negros e indígenas; em 2020, também tivemos um edital nesse sentido, em que entraram cerca de 300 pessoas. Então, nós temos um número que, diante do quantitativo de alunos, é ainda pequeno, mas tem o seu significado. Esses jovens têm provocado o Neabi e toda a instituição a refletir sobre os desafios que existem para que esse rosto antirracista da instituição vá se construindo, elaborando e se materializando na concretude das relações. Nós também tivemos, em 2021, o Ano da Consciência Negra, instituído em portaria, em que foi pedido para que todas as escolas (a Unicap se organiza a partir de seis escolas) promovessem ações de enfrentamento ao racismo. Construímos também um grupo de trabalho (GT) para a construção da Política de Enfrentamento ao Racismo. Este ano, nós já estamos na 15° Semana da Consciência Negra, com atividades que se estendem até o dia o 29 de novembro. Essas são algumas das ações que nós temos enquanto Neabi, enquanto corpo preto dentro da universidade, contribuindo para a promoção dessas reflexões e dessas posturas antirracistas.
Professor Jacson Paim – Chamo de “estereótipos negativos” as formas sutis, porém vigorosas e altamente perniciosas, por meio das quais visões depreciativas, marginalizantes, produzidas pelo olhar do outro influenciam nossas realizações e desempenho pessoal. Muitas vezes, nós pretos, somos levados a acreditar que não somos capazes de assumir ou realizar determinada tarefa ou cargo, justamente por conta dos estereótipos negativos. Como a senhora venceu, ao longo de sua trajetória profissional, esses estereótipos negativos?
Essa é uma questão muito profunda porque nós temos, ao longo da nossa existência, a nossa autoestima esmagada por um projeto de beleza, um projeto de inteligência, no qual não somos contemplados. Os padrões não nos contemplam, porém existe uma coisa que é linda e que eu acho que expressa muita beleza: quando nós nos deparamos com as nossas raízes, nasce uma força gigante dentro de nós. O que o racismo faz, nos apartando de nossas raízes, é um projeto de nos apartar de nós mesmos, mas quando nós nos encontramos com as nossas raízes, quando entendemos a força da ancestralidade, quando compreendemos que não viemos de um povo passivo, de um povo que aceitou que era escravo, mas de um povo que foi escravizado, um povo que nunca se sujeitou a essa condição de escravizado, que lutou e que resistiu, nós vamos ganhando força, ânimo, coragem e vamos nos fortalecendo e rejeitando esses padrões, porque nos deparamos com novos padrões, padrões que nos potencializam para seguir. Nossos passos vêm de longe, nossa história tem heróis, tem heroínas, tem grandeza e tudo isso nos fortalece. É claro que é uma luta quase que diária porque o outro projeto está posto, está vivo, está pulsando e nós vamos nos estabelecendo com novas ideias, novas formas de pensar, novas formas de existir, trazendo novidades para a existência, trazendo beleza, vida, solidariedade e trazendo o “eu sou porque nós somos”, novos princípios e valores, construindo, assim, um novo ambiente de existência completamente humano, solidário e vivo.
Camila Portugal – O racismo estrutural está presente em todas as instâncias sociais. Como a senhora entende que o combate ao racismo pode ser efetivo nas escolas?
Acho que o caminho é a construção de políticas de enfrentamento ao racismo institucional, porque a construção da própria política, naturalmente, promove discussões internas, pelos gestores, professores, colaboradores e alunos, já os fazendo também refletir sobre suas práticas e até onde elas ferem a dignidade da pessoa humana, a partir de atitudes racistas. E por que a política? Porque ela não só garante o agora, mas também o amanhã, pois somos passantes pelas instituições, passantes na vida, e essa política seria esse legado, porque ela está posta como instrumento institucional. Então, por meio dela, precisamos pensar práticas, ações, bolsas para entrada e permanência de negros e indígenas nas instituições. Então, temos esses caminhos que podem apontar uma direção para que as relações possam vir a ser respeitosas.
Professora Soraia Viana – Que outros instrumentos também podemos nos valer para extrapolar e reforçar as ações de combate ao racismo, de modo mais contundente, no dia a dia do espaço escolar?
Como destaquei anteriormente, uma política de enfrentamento ao racismo institucional movimenta a escola, movimenta os pais e toda comunidade escolar. Ela garante formação, capacitação, entrada de alunos, a permanência desses alunos… Creio, portanto, que a política é um excelente instrumento nesse sentido, porque, dentro dela, quando se fala de formação ou capacitação, vem as palestras, os encontros, os seminários, as conferências, produção de recursos literários, áudio visuais e bibliográficos… Tem muita coisa que a política pode oferecer para que haja possibilidade de uma efetiva prática antirracista nas escolas.
Camila Portugal – Muitas pessoas não negras não conseguem compreender qual o papel delas no combate ao racismo. O que a senhora pensa sobre isso?
Lembro que, ainda jovem, assisti a uma palestra da professora Cida Bento (uma das primeiras intelectuais a se destacar na abordagem sobre o tema) e ela já dizia que o racismo não deveria ser enfrentado por nós negros, mas por aqueles que descendem daqueles que criaram e que se alimentam dos privilégios dessa relação racista. Ou seja, quem criou o racismo foram os brancos. Então, se os brancos entendem que todas as pessoas devem ser respeitadas, viver com dignidade, todas essas pessoas brancas deveriam também se engajar nessa luta contra o racismo, porque o racismo é perverso, foi uma criação com a lógica de dominação e que permanece até hoje. A manutenção dessa lógica é cumpre uma função social, porque ela estabelece privilégios para um determinado grupo social. Então, as pessoas brancas e todas as pessoas que acreditam na democracia, que acreditam em um mundo igualitário, que acreditam que todas as pessoas devem viver com dignidade e que devem ser respeitadas, logo devem também se engajar na luta contra o racismo. Se posicionar contra o racismo é uma postura ética, uma escolha ética no mundo.
Foto: Unicap/PE.
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