30.07.15

Para refletir e rezar…

“Esforçai-vos não pelo alimento que se perde, mas pelo alimento que permanece até a vida eterna e que o Filho do homem vos dará” (Jo 6,27)

FOMES QUE NOS HABITAM

Pe. Adroaldo, SJ

“Esforçai-vos não pelo alimento que se perde, mas pelo alimento que permanece até a vida eterna e que o Filho do homem vos dará”(Jo 6,27)

Com o evangelho de hoje iniciamos a reflexão sobre oDiscurso do Pão da Vida,que se prolongará durante os próximos domingos. Depois da multiplicação dos pães, o povo foi atrás de Jesus; tinha visto o milagre, comeu com fartura e queria mais! Procurou o milagroso e não buscou o sinal e o apelo de Deus que nele se escondia.. Quando o povo encontrou Jesus em Cafarnaum, teve com ele uma longa conversa, chamada Discurso do Pão da Vida, um conjunto de sete pequenos diálogos que explicam o significado da multiplicação dos pães como símbolo do novo Êxodo e da Ceia Eucarística.

O povo viu o que aconteceu, mas não chegou a entendê-lo como um sinal de algo mais alto ou mais profundo. Buscou pão e vida mas parou na superfície: a fartura de comida. No entender do povo, Jesus fez o que Moisés tinha feito no passado: deu alimento farto para todos no deserto.

Indo atrás de Jesus, eles queriam que o passado se repetisse. Mas Jesus pede que o povo dê um passo adiante. Além do trabalho pelo pão que perece, deve trabalhar também pelo alimento não perecível. Este novo alimento será dado pelo Filho do Homem; Ele traz avida que dura para sempre. Ele abre para todos um novo horizonte sobre o sentido da vida e sobre Deus.

Com frequência, a existência humana parece uma corrida em busca daquilo que nos sacia de um modo definitivo. Nesta corrida, entram elementos que nos são familiares: necessidade, ansiedade, vazio, busca, insatisfação… Todos eles, à primeira vista, remetem à percepção de nós mesmos como seres carentes. Seria, pois, essacarênciaaquela que desencadearia todo o processo de busca.

De fato, oser humano é um ser insaciável, insatisfeito… vive eternamente buscando, muitas vezes sem saber o quê. Em contato com o seu interior, sente a necessidade de preenchê-lo a qualquer preço; na maioria das vezes, preenche-o com“coisas”:busca de poder, posses, prestígio, pão que se perde… e sente-se frustrado, porque nadalhe satisfaz. Só oPão vivopode preencher seu interior.

– “Mas afome de Deusque eu levo comigo não conhece descanso: ela é exigente! Então eu sigo…

Ela é tremenda e persistente! Então eu sigo… cada vez mais para frente!

Ela é constante e forte! Então eu sigo… Até à morte”(C. de M. Doherty).

Todo ser humano éaventureiropor essência; com ardor, ele anseia por umacausaúltima pela qual viver, umvalorsupremo que unifique a multiplicidade caótica de suas vivências e experiências, umprojetoque mereça sua entrega radical. Para dar sentido à sua vida e realizar-se como pessoa, o ser humano necessita daautotranscedência,isto é, viver para além de si mesmo, de seus impulsos, caprichos, desejos…

Carrega dentro de si a fome do infinito, a criatividade, a capacidade de romper fronteiras, os sonhos, a luz.

Portador de umaforçaque o arrasta para algo maior que ele… não se limita ao próprio mundo; traz umaaspiraçãoprofunda de ser pleno, de realização, de busca do“mais”…

Ele é desafiado a deixar a superfície banal e navegaráguas profundasda sua própria existência.

A conversa de Jesus com o povo, com os judeus e com os discípulos é um diálogo bonito, mas exigente. Jesus procura abrir os olhos das pessoas para que aprendam a ler os acontecimentos e descubram neles o rumo que deve tomar na vida. Pois não basta ir atrás de sinais milagrosos que multiplicam o pão para saciar uma carência corporal. Não só de pão vive o ser humano.

O empenho em favor da vida sem uma mística não alcança a raiz.

Enquanto vai conversando com Jesus, as pessoas vão ficando cada vez mais contrariadas com as palavras dele. Mas Jesus não cede, nem muda as exigências. O discurso parece um funil. Na medida em que a conversa avança, é cada vez menos gente que sobra para ficar com Jesus. No fim só sobram os doze, e nem assim Jesus pode confiar em todos eles!

É quase sempre assim: quando o evangelho começa a exigir compromisso, muita gente se afasta.

Jesus, com sua presença e seus ensinamentos, desperta outras“fomes”:transcendência, novas relações, horizontes abertos, mundo da partilha…

Odiscurso do Pão da Vidadesvela esta realidade: o ser humano é surpreendente, inesperado, imprevisível… é pulsação original, é interpelação inquietante; é existência peregrina, é uma mina de significados e riquezas.Ele é seduzido pela liberdade que lhe escancara horizontes novos e lhe abre mares desafiantes. Ele é“espaço à vida aberta”.Há nele algomaiorque o leva a ser mais verdadeiro, mais justo, mais criativo, mais arrojado, mais responsável.

Ele é chamado a superar medos, a escolher rumo construtivo, a definir sua identidade pessoal e a optar por causas humanas que o fazemtranscender.

O ser humano podetranscender-se, ir além de si mesmo…E transcender não significa fugir da própria realidade, mas mergulhar na própria condição humana;“transcender é humanizar-se”.

O impulso de“ir além”é talvez o desafio mais secreto e escondido no ser humano. Ele se recusa a aceitar a realidade na qual está mergulhado porque se sentemaiordo que tudo o que o cerca.

Com seu pensamento, desejo e sonho, ele habita as estrelas e rompe todos os espaços.

Numa palavra, o ser humano é um projeto infinito; tem sentido detranscendência,projeta-se em muitas direções. Ele tem fome e sede de amplos horizontes.

“Entrar”no caminho de Cristo é viver em “terra de andanças”.

Odiscurso de Jesustoca naquilo que é maishumanoem nós: mundo dosdesejos,dos sonhos, as grandes intuições… Tal apelo vem ao encontro deste dinamismo humano para potencializá-lo e abrir uma nova perspectiva: aquela centrada na pessoa e no projeto de Jesus Cristo.

Desejamos, com intensidade, com fome, com paixão, com alegria e júbilo… Somos capazes de desejar com a urgência das crianças, com a impertinência dos adolescentes, com a intensidade dos jovens, com a perspectiva dos adultos e com a sabedoria dos anciãos. Desejamos porque estamos vivos e porque somos capazes de imaginar e sonhar: mundos melhores, vidas melhores, relações melhores…

Odesejoé também um dos pilares nos quais se sustenta a fé. Crer é desejar.

Odesejonos ajuda a elevar o olhar para além do imediato; podemos sair do cotidiano, do mais prosaico, e lançar a vista e o coração ao que é possível mas que ainda não está presente. Se caminharmos com olhar fixo somente no imediato, no hoje, no aqui e agora, então nos faltará perspectiva para dirigir nossos passos para algum lugar que valha a pena.

Os homens e as mulheres de todos os tempos e lugares trazem, como que enraizados nas fendas mais profundas de sua alma,sonhosde rara beleza. São desejos deconvivialidade,desuperação da dor e da solidão, sonhos de fraternidade e harmonia…Era certamente nessa direção que Jesus apontava ao falar doPão da Vida,como o mundo dasesperançasepossibilidades.“Um outro mundo é possível”.

É preciso forte dose de ousadia e coragem para transcender-se, ir além de si mesmo…

Texto bíblico:Jo 6,24-35

Na oração:* deixe-se conduzir pela“fome e sede”de Deus que está enraizada em seu coração;

* faça o possível para estimular esta fome, entregando-se a ela;

* esteja certo de que esta“inquietação”tem sua resposta noAmorde Deus, presente na Criação;

* Quê desejas, pensando a longo prazo?

* A quê aspiras na vida e nas relações de hoje?

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