13.01.23

Artigo: Ser cristão é ser antirracista

Texto escrito para a edição especial da Revista Em Companhia pelo Padre Jean Fábio Santana, Superior do Núcleo Apostólico da Companhia de Jesus na Bahia

Artigo: Ser cristão é ser antirracista

Sabemos que o racismo estrutural é uma chaga no coração da sociedade brasileira e no coração do mundo. O racismo, perversamente, determina por meio da cor da pele do indivíduo quem é digno de oportunidades, respeito, consideração ou não, causando dor e sofrimento na vida de inúmeros seres humanos que fazem parte da população negra, habitantes da nossa Mãe Terra.

A fé cristã, e aqui destaco a Fé Cristã Católica, sempre entendeu que sua relação com o mundo deve estar alicerçada no exercício do amor a Deus e ao próximo expressado pelo amor-respeito incondicional à vida e pela promoção da dignidade humana de todas as pessoas, por meio da prática concreta do serviço e da solidariedade aos pobres, aos marginalizados e aos descartados no contexto das relações humanas, sociais, políticas, econômicas e culturais. Sendo assim, aqui é justo afirmar que o cristão, por sua vocação, é também convocado a ser antirracista, a sensibilizar-se e a ocupar-se com a garantia da dignidade humana das pessoas negras, por meio da permanente vigilância, combate e denúncia de todas as formas de racismo, tanto no seio eclesial quanto no seio da sociedade, reconhecendo, como conclamado em Puebla, que a: […] situação de extrema pobreza generalizada adquire, na vida real, feições concretíssimas, nas quais deveríamos reconhecer as feições sofredoras de Cristo, o Senhor… feições de indígenas e, com frequência, também de afro-americanos, que, vivendo segregados e em situações desumanas, podem ser considerados como os mais pobres dentre os pobres (Conferência de Puebla, 1979, p. 95)

É certo que a Igreja Católica contemporânea há muito tempo vem deixando de ser insensível, omissa e silenciosa no que se refere às questões das relações étnico-raciais em nosso país e em outras partes do mundo, especialmente no que diz respeito ao lugar marginal em que a população negra se encontra na sociedade brasileira desde o período escravista. A Igreja tem assumido posicionamentos de denúncia e combate a práticas racistas que, infelizmente, ainda se manifestam nas interações sociais individuais, coletivas e institucionais dos nossos dias atuais. Contudo, ao olhar para a história, não se passa despercebido o quanto, na história do Brasil e na história Universal, a Igreja Católica contribuiu para que a situação de escravidão, discriminação e marginalização dos negros fosse por tanto tempo cultivada, validada e perpetuada.

Propagando uma teologia de origem racista que descreve o pecado e o diabo como da cor preta, a Igreja demonizava tudo que era de origem africana e cor preta. Os símbolos e as religiões de matriz africana eram e, em muitas situações, ainda são concebidos como símbolos do mal e de tudo que é negativo e inferior, sendo considerados, então, contrários ao cristianismo. Durante o período escravista, praticamente todas as denominações religiosas cristãs ocidentais, católicas e protestantes não só foram omissas como também apoiaram e se beneficiaram do sistema político-econômico escravagista.

A Companhia de Jesus, do período dos séculos XVI e XVII, não escapou da mácula da escravidão. Ela vivenciava a moral do seu tempo, a consciência histórica e os costumes da época, por meio dos quais a instituição da escravidão africana era aceita segundo o entendimento moral vigente. Os jesuítas serviram-se da mão de obra escravizada de negros africanos, assim como o fizeram outras ordens religiosas católicas.

O historiador Serafim Leite, SJ, argumenta que a diferença entre índios e negros, no que toca a posição dos jesuítas dos séculos XVI e XVII diante da escravidão, é a de que os índios antes eram livres e os negros já chegavam na América escravizados por diferentes regiões da África, e os jesuítas não questionavam a instituição da escravidão em si, mas tão somente o trato dos negros. O diferencial dos jesuítas (Jorge Benci, Manuel da Nóbrega, Antonio Vieira no seu célebre Sermão à Irmandade dos Pretos) foi precisamente no tratamento aos escravos negros (corrigir sim, maltratar não!) e no prestar- -lhes caridade e os catequizar (leia- -se são humanos, ou seja, podem ser catequizados e batizados para se tornarem filhos de Deus).

Como podemos ver, Igrejas Cristãs Protestantes, Igreja Católica, Companhia de Jesus, temos todos muito o que pedir perdão! Não podemos mais continuar no silêncio e sem reconhecer os erros do passado, no que diz respeito à escravidão, mãe do racismo estrutural que assola a vida das populações negras até hoje.

Precisamos entrar em um exercício de reparação da dívida histórica com a população negra do Brasil e do mundo para encher de verdadeiro sentido restaurador e reparador por meio de ações afirmativas e antirracistas que praticamos e somos chamados a intensificar a cada dia. Nossa consciência cristã é convocada a permanecer engajada em uma contínua e honesta solidariedade concreta na luta e enfrentamento do racismo no seio da Igreja e no seio da sociedade. Nesse sentido, é iluminador saber que essa é uma atitude que a Igreja já vem adotando, como nos atesta o texto-base da Campanha da Fraternidade de 1988:

É trilhando esse caminho de reconhecimento, perdão e reconciliação que podemos nos juntar a tantos outros atores que estão envolvidos na construção de um mundo mais harmonioso, sem preconceitos de raça ou de cor, composto por sociedades nas quais as pessoas tenham seus valores reconhecidos, respeitados e dignificados a partir do seu conteúdo humano, não pela aparência e, muito menos, pela cor da sua pele.

Nos dias atuais ainda se faz muito necessário o engajamento da Igreja no propósito de empreender um constante embate à toda e qualquer forma de marginalização dos seres humanos, especialmente no combate ao racismo, começando na esfera religiosa e reverberando para a esfera social. Nesse sentido, é muito mais que justo nos juntarmos a todas as instituições e pessoas de boa vontade engajadas em estratégias de cuidado, de visibilização e de empoderamento das populações negras e do seu legado presente no conjunto da formação identitária do Brasil e do povo brasileiro. Precisamos somar forças para gerar espaços, criar instrumentos e sempre encontrar caminhos novos que possam tornar cada vez mais conhecido o verdadeiro valor da contribuição dos africanos e seus descendentes nas áreas social, econômica e política da história do Brasil e de outras partes do mundo.

O antirracismo está disponível como valor e programa político a diferentes grupos sociais. Que, enquanto cristãos, façamos dele lente para interpretar a mensagem bíblica e o nosso agir pastoral.

Que a Igreja continue cada vez mais envolvida em ações que dinamizem e promovam a igualdade racial, com ações desenvolvidas por meio de suas pastorais, de grupos organizados, dos Movimentos Sociais, do Movimento Negro, da Pastoral Social da Igreja Católica, da Pastoral Afro, do Greni [Grupo de Reflexão de Religiosos(as) Negros(as) e Indígenas], dos Grupos de Padres Negros, das Irmandades Católicas, das APNs (Agente de Pastoral Negros) e, por fim, por meio dos espaços para reflexão sobre a condição sócio-político-econômica de homens e mulheres negras.

Que a Companhia de Jesus, consciente da questão histórica da escravidão e das consequências duradouras dela, também se engaje cada vez mais na mobilização da luta antirracista. Por isso, desejo vida longa à Articulação Afro dentro da Conferência dos Provinciais da América Latina e Caribe (Afrocpal) e vida longa à Articulação Afro Brasil-SJ na Província dos Jesuítas do Brasil. Esta última tem sido um espaço representativo e articulador da presença afro na Província BRA, promovendo a aproximação entre pessoas negras e não-negras que estão vinculadas à missão da Companhia de Jesus no país, com o intuito de favorecer o encontro, a partilha de vida e missão, a formação e reflexão sobre a questão étnico-racial, a luta contra o racismo e a promoção da igualdade étnico-racial na sociedade e em nossas instituições.

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