11.11.20

“Apresentar Anísio Teixeira como aluno do Vieira é falar das influências do humanismo cristão sobre ele”, diz Clarice Nunes

Doutora em Ciências Humanas, dedicada à História da Educação, a professora concede entrevista e participa de live, em série especial do Colégio pelos 120 anos de nascimento do ex-aluno ilustre

“Apresentar Anísio Teixeira como aluno do Vieira é falar das influências do humanismo cristão sobre ele”, diz Clarice Nunes

Considerada uma das maiores conhecedoras da obra de Anísio Teixeira, a professora aposentada da Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ) Clarice Nunes concede entrevista ao Colégio Antônio Vieira, como parte da série especial comemorativa dos 120 anos de nascimento do educador, ex-aluno ilustre do Colégio Antônio Vieira. Autora da tese de doutorado “Anísio Teixeira: a poesia da ação”, a professora Clarice revela como foi o estudante Anísio no Vieira e a influência da formação jesuíta para os ideais daquele que se tornou destaque na história da sociedade brasileira como um dos maiores educadores do País. Confira!

1- Sabe-se que Anísio Teixeira estudou em instituições jesuítas, a maior parte no Colégio Antônio Vieira, em Salvador. Como os ideais da Companhia de Jesus, fundada por Santo Inácio de Loyola, contribuíram na formação do visionário educador?

Apresentar Anísio Teixeira como aluno do Colégio Antônio Vieira é falar das influências do humanismo cristão sobre ele numa época fundamental da sua vida como adolescente e jovem. Em 1912, ele estudou no Colégio São Luiz Gonzaga, em Caetité, antigo ginásio organizado pelos jesuítas e, desde então, já se destacava pela vivacidade de espírito e o rigor nos deveres. Foi aí que começou sua admiração pela Companhia de Jesus, que o acompanhou quando ingressou, em 1914, no Colégio Antônio Vieira, em Salvador. Conheceu grandes amigos, alguns deles seriam seus companheiros na jornada pela educação brasileira, como Joaquim Faria Goes e Hermes Lima, dentre outros. No Antônio Vieira, Anísio encontrou muitos valores da Companhia de Jesus: padres professores de diferentes nacionalidades com enorme cabedal cultural e intelectual. Alguns deles foram, inclusive, colaboradores de revistas científicas internacionais. O Colégio Antônio Vieira não foi apenas uma escola de alta qualidade para os jovens, mas também um lugar de discussão cultural, reunindo médicos, advogados, produtores e comerciantes que ali mantinham encontros regulares, contribuindo para criar um clima fecundo de debate de ideias, dentro dos limites impostos pelo caráter confessional da instituição. Por volta da década de dez, do século XX, o Colégio Antônio Vieira desempenhava a função que, em outras cidades brasileiras, apresentavam certas pensões, livrarias ou editoras de revistas e jornais. Anísio não participava desses debates, mas usufruía, indiretamente, desse clima de especulação e de gosto pela cultura do qual partilharam educadores e políticos de sua geração e da geração imediatamente anterior. Ele introjetou o mundo dos colégios jesuítas como o seu próprio mundo. Queria ser inaciano. Com sua permanência no Colégio Antônio Vieira, vemos as alternativas de encaminhamento de sua vida se desenhando: o sacerdócio; a magistratura; o exercício profissional liberal da advocacia, medicina (encaminhamento paterno) ou engenharia (encaminhamento de seu irmão Nelson); o exercício do jornalismo e das letras, a condução dos negócios familiares e a carreira de político profissional.

2- Como era, no dia a dia, o perfil do estudante Anísio Teixeira e como isto pode ter influenciado na sua trajetória em prol da Educação no Brasil?

Ser educado dentro dos códigos disciplinares que regulam a experiência educativa num colégio jesuíta, como afirmei em minha tese de doutoramento, é colocar no foco os efeitos da pedagogia jesuítica sobre o sujeito Anísio. Ora, apontar esse fato já é falar da genealogia de um educador, no que diz respeito a uma disciplina profunda, que implica interiorização de normas e valores morais, disciplina que passa também pelo corpo. Os professores reconheceram os dons de Anísio: a inteligência, o desejo, a imaginação, a memória. O poder disciplinar da pedagogia inaciana teve a função de integrar as forças de Anísio (físicas, intelectuais, emocionais) na direção de uma ação na vida tecida de modo consciente, racional e espiritual. No seu período de formação, Anísio cultivou o domínio da escrita e o manejo da retórica, que se tornou, nele, um instrumento de poder, invenção e cultura. Ele abriu seu pensamento para o campo filosófico e o contato com os livros numa relação visceral que o acompanhou por toda a vida. Ao mesmo tempo, a pedagogia inaciana inculcou-lhe a concepção de uma ordem racionalizada por meio de um treinamento metódico, avesso à improvisação. O culto mariano (à Virgem Maria) reforçou, nele, o treinamento do domínio de si mesmo. Quando foi nomeado Inspetor Geral de Ensino, na década de vinte, do século XX, em Salvador, e travou contato com um ensino público que não conhecia, foi inevitável a comparação. Por oposição à cultura, à organização, à competência docente dos colégios nos quais estudara, deparou-se com a pobreza de recursos humanos e materiais, a redução da cultura, a dispersão e a desarticulação dos serviços educativos, o clientelismo político-eleitoral (a imoralidade, a corrupção e a acomodação) alimentando a ineficiência da máquina estatal. Depois deste “batismo” dramático, o seu bom combate a favor da educação brasileira tornou-se história.

A professora Clarice Nunes é considerada uma das maiores conhecedoras da obra de Anísio Teixeira


3- Anísio foi um dos integrantes do Movimento Escola Nova, sendo um dos signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Como destacamos sua contribuição mais diretamente nesse momento histórico para a educação brasileira?

Anísio Teixeira, ao lado de Fernando de Azevedo, Paschoal Lemme e tantos outros renomados educadores brasileiros, foi um signatário do Manifesto dos Pioneiros, até hoje emblemático, entre nós do campo educacional, por afirmar a vocação social da educação, apoiada no valor da individualidade, tendo como princípio a escola única, cujo acesso seria franqueado a todos os níveis, independentemente das condições econômicas; a laicidade, a obrigatoriedade e a coeducação. A leitura desse importante documento da história da educação brasileira revela uma tensão entre a exigência de um princípio ético que apresenta o Estado como interventor social e promotor da igualdade da cidadania e um princípio liberal que reconhece a natureza social do homem, mas entende sua sociabilidade na sua capacidade de preservar a autonomia e a diversidade. Sem uma resposta definitiva, se consultados os arquivos, creio que é possível afirmar que Anísio contribuiu fortemente para a definição do princípio liberal e que tenha colaborado com a redação do Manifesto, atribuída a Fernando de Azevedo. No momento em que o Manifesto vem a público, com uma divulgação orquestrada nos grandes jornais do país, Anísio Teixeira ocupava o cargo de Diretor Geral da Instrução Pública da cidade do Rio de Janeiro e havia sido indicado presidente da Associação Brasileira de Educação (ABE). Na passagem do ano de 1932 para 1933, realizou-se a Conferência Nacional de Educação e, nela, os educadores empenharam-se em oferecer sugestões para o capítulo Educação e Cultura da futura Constituição de 1934. É um período de grande efervescência política no qual Anísio, como presidente da ABE, teve papel de destaque. Anísio Teixeira participou diretamente das lutas pela Constituinte, salientando que a educação nas escolas públicas deveria caracterizar-se pelo espírito de liberdade e de crítica, cabendo tão somente ao Estado velar para que assim se mantivesse.

4. Em tempos de aulas remotas por conta da pandemia, as escolas tiveram que avançar em tecnologias educacionais para chegar até a casa dos estudantes. Que paralelo podemos traçar em relação aos ideais de Anísio Teixeira pela evolução constante da educação para atender às demandas do Brasil contemporâneo?

O uso de tecnologias educacionais e da educação à distância seria, do meu ponto de vista, defendido por Anísio Teixeira, mas não como medida isolada. Seu olhar para a educação brasileira sempre foi um olhar de conjunto. Não é só o modo de ensino. É um modo de ensino eficiente. É também a melhoria da formação docente, a carreira profissional do educador, os recursos materiais das escolas, o serviço de biblioteca, hoje potencializado pela web. Ainda, a avaliação do sistema de ensino e a correção dos seus pontos frágeis. Mas o mais importante e que foi realizado pela Escola Parque, em Salvador: uma educação integral para o aluno brasileiro com atividades intelectuais, físicas, culturais e, nos dias de hoje, incluiríamos o domínio digital e a capacidade de busca de informações confiáveis, o que exige capacidade de discriminação, pesquisa acurada, discernimento.

Ideais e feitos de Anísio Teixeira são marco na história da Educação no País


5. Dentro desse mesmo contexto de aulas online, mostrou-se ainda mais evidente as disparidades no campo da educação no Brasil. É um cenário que Anísio já alertava e, como a senhora destacou, que sempre tentou combater, até mesmo pelo fato de ter tido acesso à uma formação escolar de qualidade. Que tipo de lições podemos tirar de sua atuação incansável em prol da educação em nosso País?

A obra de Anísio Teixeira é um convite para que resgatemos o sentido da qualidade da educação pública no que tem de substantivo, ou seja, enquanto conjunto de transformações sociais que visam eliminar privilégios, hierarquias e desigualdades. O peso das tradições culturais nacionais, os constrangimentos próprios de cada contexto de escolarização, o trabalho de reinterpretação dos atores no campo escolar em cada nível, desde o mais alto centro de decisão até a sala de aula, não podem ser menosprezados. A obra de Anísio Teixeira é resultado da eleição da educação como foco de trabalho. Sua motivação em torno desse foco torna-se um campo de significados, justamente pela sua persistência. Anísio é um homem apaixonado pela educação. A paixão não se explica. Vive-se. A obra de Anísio Teixeira é a defesa apaixonada da educação, mas não apenas isso: é, como afirma Florestan Fernandes, uma defesa polida por uma filosofia da educação e uma compreensão aguda da história da nossa sociedade. Uma defesa iluminada pela sua imaginação pedagógica. A obra de Anísio e de seus companheiros, como nos ensinou Antônio Cândido, não foi revolucionária, mas expressão de um pensamento radical, que operou um significativo deslocamento para a frente, na direção da solidariedade e da justiça social. E isto precisa ser reconhecido e valorizado.

PADRE GERALDO, SJ
Confira também a entrevista com o padre jesuíta Geraldo Coelho de Almeida, SJ, como parte da série especial comemorativa dos 120 anos de nascimento do educador Anísio Teixeira, ex-aluno ilustre do Vieira. Licenciado em Filosofia e Teologia, mas também um grande estudioso da História, sobretudo, da Companhia de Jesus, Pe. Geraldo, SJ, foi contemporâneo de Anísio Teixeira, mantendo, por sua vez, uma relação de mais de 60 anos com o Vieira, onde também foi ex-aluno, participou de cursos de formação e assumiu, posteriormente, cargos diversos, inclusive de diretor administrativo (1992-1996). Na entrevista, ele revela algumas curiosidades sobre a trajetória do educador no Colégio e, depois, na vida pública, onde se destacou pelos ideais em prol de uma educação de qualidade.

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